Este Verão, tímido e titubeante, hesita entre dias joviais de Sol pleno e dias de "cortinados" corridos, de um cinza plúmbeo, que não deixam passar os raios de luz que enchem a nossa alma de alegria.
E foi num desses dias cinzentos de chuva miúda e impertinente, enquanto passeava o meu cão, que me pus a observar o céu e dele caía uma poalha prateada que repassava as laçadas do meu casaco de malha e me deixava encharcada.
Ah! E ... se em vez de pó de chuva prateada, caísse do céu pó de chuva de ouro?
Talvez muita crise que por aí anda diminuísse. Ou talvez não!
Mas isso são contas de outro rosário.
E a caminhada lá continuou com passada vigorosa, sim, porque o meu cão não é amigo da passeios calmos, gosta de passo apressado e correrias tresloucadas.
E ia eu nisto, quando me veio à memória um episódio da mitologia grega em que entra a princesa Dánae, mãe do herói Perseu.
O mito de Dánae foi, ao longo dos tempos, muito difundido tanto na literatura ( grega, latina e medieval) como nas artes plásticas.
Vamos então ao mito de Dánae:
Dánae era filha de Acrísio, rei de Argos.
Acrísio, um dia consultou o oráculo de Delfos, que predisse que morreria às mãos de um neto, filho de Dánae.
Assustado com esta predição e para evitar que se cumprisse, decidiu encerrar a filha, juntamente com uma serva, numa câmara de bronze subterrânea que mandara construir.
Mas apesar de todas estas precauções, Dánae concebeu um filho.
Como?
Não há impedimentos para os deuses! Nem para o ouro!
O deus Zeus enamorando-se pela jovem Dánae decidiu chegar até ela transformando-se numa fina chuva de ouro entrando na câmara subterrânea através de uma fenda. Desta união nasce uma criança: o herói Perseu.
Este mito foi frequentemente invocado como símbolo do poder absoluto do ouro sobre os corações humanos e como símbolo da capacidade que o ouro tem de abrir as portas mais aferrolhadas.
Esta história mitológica continua com episódios intrincados e narrativas cheias de acção e aventura, mas vou ficar por aqui.
Apenas acrescento que a predição do oráculo de Delfos se cumpriu: Perseu, filho de Dánae, matou Acrísio, seu avô.
O mito de Dánae tem agradado a artistas que o têm representado nas suas obras, desde a época clássica (nos vasos gregos de figuras vermelhas)
até aos nossos dias, passando por pintores renascentistas e barrocos.
O pintor veneziano, Ticiano (Tiziano Vecellio)(1490(?) - 1576) tratou este tema mitológico em diversas ocasiões a pedido de ilustres personagens, desejosas de possuir uma imagem da beleza feminina cheia de erotismo.
No Museu do Ermitage (São Petersburgo) encontra-se uma dessas obras de Ticiano.
Ticiano
"Dánae"
Óleo sobre tela - 120x187 cm
1553
Museu Ermitage - São Petersburgo
Ticiano pintou Dánae como uma jovem numa pose voluptuosa, junto à velha serva que procura recolher, no avental, o que sobra da chuva de ouro que cai do céu.
Ticiano ao incluir a velha serva pretende evidenciar, por contraste, a avidez desta e a juventude e beleza da rapariga convertida em receptáculo.
Esta Dánae do Museu do Ermitage é muito semelhante a outra que Ticiano pintou para o rei Filipe II de Espanha e que se encontra no Museu do Prado (Madrid).
Ticiano
"Dánae recebendo a chuva de ouro"
Óleo sobre tela - 129x180 cm
1553/54
Museu do Prado - Madrid
Esta obra está inserida numa série de obras mitológicas que este artista pintou para Filipe II e a que ambos chamaram "Poesias".
Este quadro do Museu do Prado é muito belo e sensual, mostra uma jovem mulher nua, reclinada e outra velha, vestida, sentada de costas, levantando o avental para receber parte das moedas de ouro que iam caindo.
A obra está dividida em três partes: no lado esquerdo encontra-se Dánae, deitada numa pose sensual, no direito está a velha serva e no centro o céu negro que a pouco e pouco se torna dourado e de onde caem as moedas ou pó de ouro e que faz a união dos dois mundos (o de Dánae e o da velha serva).
A postura desta jovem mulher nada tem de púdica, até parece abandonar-se com prazer à presença do deus Zeus. Tudo indicia desejo sexual: o tom de pele claro, a boca entreaberta, o cabelo desalinhado caindo sobre o peito, a atitude brincalhona com o cãozito.
Ticiano apresenta-a como uma cortesã.
Esta Dánae espanhola, conservada no Museu do Prado, foi precedida por uma versão encomendada pelo príncipe Ottavio Farnesio ou pelo Cardeal Alessandro Farnesio ( as fontes apontam os dois nomes) e que hoje se encontra no Museu Capodimonte, em Nápoles.
Só nesta versão é que Ticiano fez acompanhar Dánae de Eros, o Cupido, deus do amor.
Ticiano
"Dánae e o Cupido"
Óleo sobre tela - 117x69 cm
1545
Museu Capodimonte - Nápoles
Estes quadros têm muitas semelhanças, por exemplo a pose da protagonista, mas no do Museu de Capodimonte, os efeitos da luz realçam, há um grande contraste entre o fundo escuro e o branco níveo da pele de Dánae, nos outros dois, nos dos Museus do Ermitage e do Prado os contrastes são mais cromáticos. Neste último a paleta é mais desenvolta e vibrante.
Este tema mitológico tem apaixonado muitos pintores, a ele voltarei em breve.
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