terça-feira, 21 de junho de 2011

Pierre Bonnard

Li, há poucos dias, um artigo de Pedro Mexia, sobre o pintor Pierre Bonnard
(1867/1947).

É um artigo sobre a arte e a felicidade, que me deu prazer ler. Gostaria de o partilhar convosco:

" O que é a felicidade? Toda a gente diz que a arte se ocupa disso. E, no entanto, há, por exemplo, Bonnard.
Cheguei a Bonnard por causa de Degas, porque as banhistas de Bonnard são muitas vezes citadas a propósito das bailarinas de Degas. Mas as banhistas são o zénite de um percurso de júbilo. Bonnard parece ser o homem da abundância terrestre, das folhas, flores e frutos, e sabemos como a natureza era o seu ambiente natural, sobretudo nos últimos anos de vida, no refúgio dos Alpes Marítimos. A natureza em Bonnard, como tudo nela, aliás, é intensamente cromática, de tons laranja e violeta, impressionista no traço e iridescente na sensação. Mas reparem que Bonnard não se preocupa demasiado com a realidade tal como ela é. As regras da perspectiva não se aplicam, ele explicou que queria que tudo fosse visível em igual medida.

Jean Clair ( em "Bonnard", 1975) escreve que o pintor não representava nunca a realidade imediata mas uma realidade recordada. "Não pintar a vida, mas tornar a pintura viva", era o lema de Bonnard, e existe de facto uma estranha autonomia da arte face à realidade. É um real recordado, transfigurado, emotivo. O carpe diem , em Bonnard, não é a pura gratuitidade feliz do momento, como em Renoir, mas a persistência das coisas banais e boas que, revisitadas, ganham gravidade e enigma.

Esta pintura é tão temporal quanto intemporal. Em todas as telas encontramos um vigorosa existência do visível, e de um visível marcado pela passagem do tempo, nomeadamente pela meteorologia. É o visível que está em muito Cézanne e Matisse, mas é um visível frágil, perecível. Ao mesmo tempo, estes quadros podiam ser de qualquer época, tendo em conta os seus motivos, não há ´historicidade` aqui, apenas, década após década, as mesmas naturezas mortas e as mesmas janelas abertas sobre jardins.

Bonnard é o puro pintor, aquele que acredita mais na paixão do visível do que no cepticismo intelectual. Menorizado por alguns por causa dos seus temas demasiados comuns, demasiado burgueses, demasiado plácidos ou intimistas, Bonnard merece a atenção dos desatentos. Porque na irradiação das suas cores, na harmonia dos seus enquadramentos, no desenho das suas figuras, há uma visão inquieta das aparências, que é o mesmo que dizer uma visão inquieta da felicidade. É por isso que me lembro tanto dele.

Sobretudo, é claro, por causa dos nus. Esses nus que são, muitos deles, o mesmo nu, Marthe, que ele conheceu em 1893, e que se tornou seu modelo e depois sua mulher. Existe um tipo físico em Bonnard, como em Degas, as pernas longas, os seios pequenos e altos, as ancas estreitas, e existe uma situação típica o banho. Não são banhistas de mar, as de Bonnard, são mulheres que estão no banho, na banheira, esse local de culto ao corpo, à higiene, à intimidade.


" Crouching nude in the tub"


"La sortie de la baignoire"


" Nu jambe droite levée"


"Nu rose à la baignoire"

Em vez de, como em Renoir, o corpo feminino aparecer directamente associado à natureza, deitado na erva, oferecido, encontramos nestes nus um recolhimento ritual, são mulheres que estão sozinhas, que não estão a ser observadas, que não estão a seduzir ninguém, excepto, claro, Bonnard, que está em frente delas, excepto, claro, nós, que as vemos à distância no tempo. As bailarinas de Degas, que são uma das minhas ideias de felicidade, estão em espectáculo, ou vêm dele, ou vão para ele, mas o espectáculo dos nus de Bonnard é diferente, são Vénus domésticas, que umas vezes parecem estátuas, outras vezes simples silhuetas, que são a experiência imediata de uma felicidade imediata, recatada, finita.


~"Nu a contre-jour"


" Nu en hauteur"


"Dans le Cabinet de toilette"


"Femme devant un miroir"


É o hieratismo quase fictício de "Nu en hauteur" (1906), o movimento de "Femme penchée" (1907), a meninice de "Dans le cabinet de toilette" (1907), a sensualidade de "La cheminée" ( 1916), a quase bailarina de "Femme nue se baissant" (1923), aquele "Nu, jambe droite levée" (1924) cuja perna direita nem sequer se vê, é a composição perfeita de "Nu rose à la baignoire" (1926-1930), o vibrante "Nu de dos à la toilette" (1934), a Ofélia de "Nu à la baignoire" (1936), décadas com o mesmo motivo, com variações pequenas, e significativas de tão pequenas, e sempre ou quase sempre com Marthe.


A arte não se ocupa da felicidade? Quem disse? A felicidade não é apenas a euforia, e a euforia ruidosa. Pierre Bonnard, que acreditava na pintura, na natureza e na mulher, passou a vida inteira a representar, ou antes, a imaginar de novo, a pequena felicidade do visível. Uma felicidade discreta mas exigente, quotidiana mas altíssima. Que passa, como passou, quando Marthe morreu precocemente, por exemplo, mas que sobrevive nos quadros, visível e enigmática. Uma felicidade que se contenta com pouco porque é muito. Que acredita naquilo que vê porque vê aquilo em que acredita." *


Apreciei este texto. Parabéns ao seu autor, que escreveu sobre um pintor que "menorizado por alguns (...) merece a atenção dos desatentos".

* Publicado no suplemento "Atual" do Semanário "Expresso" de 10 de Junho de 2011,
pág.3

Nota - O artigo não continha imagens.

2 comentários:

  1. "... Bonnard escapou das trincheiras e serviu como pintor da guerra durante um breve período. Ele pintou apenas um quadro retratando a desolação da guerra - Un village en ruines près du Ham (Uma aldeia em ruínas perto de Ham) - e rapidamente voltou aos nus e aos interiores, seus temas prediletos. ..."
    Paris - a festa continuou - Alan Riding, p.17/18.

    pbruicolck@gmail.com

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  2. Obrigada pela sua participação.
    É com muito gosto que recebo comentários que enriquecem este blogue.

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